Jorge Fernando em entrevista: "Lisboa faz-me falta"
No dia Mundial da Música, o Noite e Música saiu à rua para uma conversa com Jorge Fernando, numa esplanada da mítica Alfama.
Noite e Música: Nesta semana vai pisar o palco do coliseu de Lisboa a 5 de outubro e o do Porto a 6 para apresentar o seu novo trabalho "Chamam-lhe fado". Quais são as suas expectativas para estes concertos?
Jorge Fernando: As únicas expectativas que nós temos neste momento, tanto eu como todos os meus convidados é de proporcionar uma boa noite, uma partilha de música entre as pessoas que vão estar presentes e nós. Que possa pelo menos ficar na memória e na pele das pessoas que estiverem presentes.
NM: O espetáculo vai contar com várias participações da música portuguesa, algumas das quais não estão diretamente relacionadas com o fado. Qual o motivo destas participações?
JF: Há muito tempo que faço isso… Estou-me a recordar por exemplo dos meus três álbuns da década de 90 em que gravei fado com bateria e percussão, com alguns elementos da Brigada Victor Jara, cruzei o fado com música mais popular. Foi muito arrojado mas fico muito feliz por ver que 15, 16 anos depois é o que se está a fazer hoje, toda a gente tem bateria e percussões. Eu sempre achei que o fado não pode ser um parente menor da música, é música como todas as outras e como tal deve evoluir, deve-se misturar, deve cruzar-se… O perigo desse cruzamento é às vezes perder-se a noção do conteúdo. Muda-se a forma mas muda-se também o conteúdo então aquilo não é nem uma coisa nem outra. Evoluindo mas mantendo a raíz do fado mas também a música com que me cruzo como por exemplo Sam The Kid. Ouvindo, não deixa de ser um rap mas também não deixa de ser um fado. É um cruzamento.
NM: Em 2009 teve oportunidade de partilhar o palco com Sam the Kid, nas Festas de Lisboa. Até que ponto esta fusão influenciou o seu novo trabalho?
JF: A grande influência foi eu perceber que eu não perdia nada em estar cruzado com outros tipos de música. Ao contrário do que seria de esperar nem mesmo os mais puristas do fado acharam que eu estava a fazer erros, nem a desvirtuar o fado.
NM: Podemos definir esta junção musical por novo fado?
JF: Desde os anos 80, quando eu comecei a produzir Nuno da Camara Freire, Mariza, Ana Moura, que se fala que eu criei um novo fado, levei um pouco o fado para a frente. Eu acho que se deve um pouco aos textos, à modernização harmónica, mais abrangentes em relação aquilo que se fazia mas que traz uma aragem diferente e que enquadra o fado nos tempos modernos.
NM: O fado continua atual? O que acha que mudou nos últimos anos?
JF: O fado continua atual. O relato dos poetas que escrevem fado, escrevem em função das experiências atuais, das pessoas… Hoje numa casa de fados bebe-se um bom vinho com um bom prato, bebe-se whisky, já não se vai comer um chouriço assado. A maneira de viver, o centro social mudou, as pessoas sentem de outra maneira… Tudo isto evoluiu e é isso faz com que o fado seja mais moderno.
NM: Ao longo da sua carreira, já colaborou com vários artistas de renome. Quais as colaborações que mais o marcaram?
JF: Para além da Amália e de Fernando Maurício que foram o meu começo. Digamos que o Fernando Maurício foi a minha primária e a Amália a minha universidade. Depois tenho-me cruzado com músicos de todo o mundo que me têm dado uma experiênca tremenda como por exemplo Herbert Xmont que foi considerado recentemente como o Mozart da atualidade, o Lucio Dalla que faleceu este ano mas que era considerado o topo de gama de Itália, um homem que só nos Estados Unidos com um dueto que escreveu e cantou com o Pavarotti vendeu 6 milhões de discos, A Filetta que é um grupo polifónico da Córcia e que também está no meu ultimo disco e que já foram convidados do Sting e vários prémios mundiais… São marcantes, são experiências marcantes, agora faltavam-me esta experiências que também são marcantes com os Nu Soul Family, com os Expensive Soul e sobretudo com o Fausto que é um dos faróis da musica em todo o mundo.
NM: Podemos dizer que o ponto alto da sua carreira foi a homenagem que lhe prestaram em Recanati, em Itália?
JF: Eu penso que sim porque enquanto aqui eu passava um pouco à margem, mais ostracizado, também por culpa minha porque entretanto decidi ir para trás da capa dos discos e larguei a frente… Por cansaço de percorrer este mundo fora, desde menino, desde os tempos da Amália e depois eu próprio, cantar em todos os palcos do mundo eu acabei por me cansar e dedicar a outras carreiras. Mas foi muito saboroso que a cultura italiana desse um prémio em relação ao trabalho feito no fado.
NM: Alguma da sua obra ficou conhecida na voz de outros fadistas. Falo por exemplo da "Chuva" de Mariza e de "Búzios" na voz de Ana Moura. Sente reconhecimento por parte do público?
JF: Quem está mais por dentro do fado sim. O público em geral não sei. Eu trabalhei muitos anos com Amália e a Amália anunciava sempre o nome do autor e do compositor dos temas que ia cantar. Hoje vejo muitos espetáculos e é uma coisa que não sucede. As pessoas cantam e não dizem de quem são, o que parece-me uma grande injustiça porque sem compositores e autores não haveria fado.
NM: De que modo os 6 anos em que acompanhou Amália Rodrigues influenciaram o seu trabalho?
JF: Eu acho que se não tenho trabalhado com a Amália não era a mesma pessoa, o mesmo músico. Porque foram preciosos ensinamentos juntos de uma pessoa a quem eu chamo de injustiça. Amália é injustiça. Injustiça porque tudo está dentro dela, ela nasceu com tudo. Não só com aquele talento monumental que a levou a ser considerada uma das cinco melhores vozes do mundo do século passado, como depois pessoalmente uma pessoa de uma inteligência brilhante e ao mesmo tempo coexistindo com uma argúcia tremenda o que é raro num ser humano, ou se é arguto ou se é inteligente e ela era ambas as coisas então foi um manancial de ensinamentos que eu colhi e que me permite hoje dizer que eu não seria nem a mesma pessoa nem o mesmo músico sem ter passado por ela.
NM: Qual a recordação de que mais se recorda desse tempo?
JF: Um dos muitos cd´s que gravei com a Amália, pedi-lhe para o assinar e ela escreveu na capa "Jorge Fernando, gosto de si como filho", não é como um filho mas sim como filho, ou seja, percebi pelas palavras da Amália que se ela tivesse um filho gostaria que tivesse sido eu, portanto esta é a mais grata recordação que tenho.
NM: Lisboa é a sua cidade. É também a sua inspiração?
JF: Lisboa faz-me falta… Já palmilhei por assim dizer algumas das grandes cidades do mundo por assim dizer, mas Lisboa continua a exercer um fascínio muito grande sobre mim e por isso não estranho nada quando todos os meus amigos estrangeiros vêm a Portugal e se apaixonam por Lisboa. Lisboa tem um encanto realmente especial.
NM: E quais os recantos desta cidade que mais o inspiram?
JF: Neste momento Alfama. É muito especial…
NM: A crise económica afetou de algum modo a sua carreira nestes últimos anos?
JF: Eu acho que a crise económica tem afetado toda a gente e na minha perspetiva desnecessariamente porque quem criou estas dívidas foram os governos consecutivos que esbanjaram dinheiro e eu oiço perplexo algumas pessoas dizer que os portugueses gastaram demais quando quem gastou o nosso dinheiro foram os governantes e continuam a gasta-lo. Uma crise desmesurada que ainda por cima nos relata que não leva absolutamente a nada. Não há receitas… Toda esta austeridade não é o bom caminho. Isso na minha opinião deve-se à invasão dos tecnocratas dos governos da Europa. Há falta de governantes com visão, há por demais tecnocratas nos governos que aplicam o que aprenderam nos livros e os livros aceitam tudo o que lá quisermos pôr e muitas vezes os livros estão errados como agora se está a provar porque não há recuperação cm todos estes esforços, com o dinheiro que foram buscar selvaticamente ao bolso das pessoas não vemos recuperação, pelo contrário, vemos aumentar o défice. Este não é com certeza o caminho. E qualquer galego que saiba fazer contas sabe que destruindo a classe média não há receita, não gira o dinheiro. Não sei o que é que se passa na cabeça destes governantes.
NM: O que podemos esperar de Jorge Fernando nos próximos tempos?
JF: Agora gostava de levar este projeto com a equipa que está a trabalhar comigo o mais longe possível. Pelo menos que a música consiga ser um pouco de confortante para as pessoas que estão, pelo aquilo que observo a ficar afetadas economicamente mas também psicologicamente porque isto leva a um desespero que não é bom para a cabeça das pessoas, de maneira a que se a minha música poder reconfortar alguém gostava de ir por aí, Portugal fora com esta incumbência.
NM: Há uns anos houve um projeto controverso denominado Amália Hoje. O que achou do projeto?
JF: Gostei muito do que os Amália Hoje fizeram. Gostei por três razões e passo a citar: Primeiro houve o reconhecimento pela Amália que não é uma figura do fado, é uma figura do país, segundo, fizeram também uma homenagem aos poetas e compositores daquela época que eram maravilhosos e terceiro pelo bom gosto do projeto. Foi delineado com muito bom gosto, por muito bons músicos e venham mais desses que eu fico à espera.
NM: No dia Mundial da Música quer deixar alguma mensagem aos nossos leitores e um incentivo para se deslocarem aos coliseus?
JF: Sim, no dia Mundial da Mésica primeiro gostava de dizer aos músicos portugueses para não desistirem porque pela experiência internacional que eu tenho digo que são bons em qualquer parte do mundo. Sei que está difícil arranjar uma editora, editar um cd, mas não desistam porque a música precisa deles e esta nova geração é de uma musicalidade tremenda e eu confio muito neles para o futuro em Portugal. Para as pessoas que puderem e cujos bolsos lhes permitam que nos vão ver para a gente partilhar estas noites.
Fotos: João Paulo Wadhoomall
Entrevista: Bruno Silva
Inserido por Redação · 03/10/2012 às 13:40